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Por que defender as Humanidades? Parte I: O lugar do conhecimento

Atualizado: 7 de jan. de 2021


A criação deste blog vai ao encontro de uma necessidade que se apresenta com cada vez mais urgência em nosso contexto atual: defender o que chamamos de Humanidades. Essa grande área não apenas engloba as tradicionais ciências humanas como também o que concerne à vida e que pode ser conectado a partir de nexos significativos.

O que caracteriza propriamente as Humanidades é o seu potencial criativo frente às vicissitudes da existência, isto é, sua força vinculante que permite compreender a realidade de modo conjunto, integrado e, portanto, complexo. Mais do que sugere a tradicional área Ciências Humanas, as Humanidades abrangem também outras áreas do saber que dizem respeito a essa força própria do pensar voltado à complexidade que constitui o ser humano, tais como a filosofia, a psicologia, as letras e as artes. Nesse sentido, defender as humanidades constitui não apenas uma necessidade, mas também um dever de todos aqueles que veem no pensamento a potencialidade de uma vida mais autônoma e criativa. Especialmente, quando se leva em conta conjunturas históricas e contextos sociais tão ameaçadores e inóspitos ao pensar.

Naturalmente, as demais formas de conhecimento humano - as ciências exatas e as biológicas - também constituem aspectos determinantes na produção de conhecimento. Nosso intuito não é, de forma alguma, estabelecer uma hierarquia entre os diversos saberes, mas reafirmar o lugar das Humanidades na vida dos indivíduos e, consequentemente, na esfera social. Lugar, por diversas vezes, marcado pela presença constante da possibilidade de despejo, da falta de espaço, da ausência de oxigenação provocada por aqueles que, por não enxergarem a importância e a relevância desse campo investigativo, cerceiam o nosso escopo de atuação, limitam a expansão e a envergadura de nossos movimentos e terminam por nos desapropriar daquilo que nos é mais próprio: a vida. Se há um lugar próprio às Humanidades, esse lugar é a vida, tal como ela se mostra e se dá, em todas as suas possíveis e múltiplas formas de realização.

Se as ciências exatas e biológicas são marcadas pela certeza de um lugar de relevância e prestígio na sociedade, por terem sua eficácia garantida em meios cujos resultados são evidentemente óbvios, o mesmo não pode ser dito, por outro lado, das Humanidades. Além da ausência de obviedade em seus objetos de pesquisa, não apenas a relevância como também a validade das Humanidades é frequentemente questionada.

O estabelecimento de suas bases em dados cientificamente comprovados e em resultados palpáveis é uma das justificativas mais imediatas da suposta validade universal das ciências que trabalham com parâmetros concretos, calculáveis, isto é, com a exatidão das provas consideradas irrefutáveis e com a validade supostamente neutra de resultados esperados pela comunidade científica e amplamente utilizados na sociedade civil. O ponto aqui é questionar os critérios que possibilitariam estabelecer demarcações tão profundas e decisivas entre os diversos tipos de saber para além da obviedade de suas aplicações ou da possível validade, supostamente neutra e universal, de seus resultados.

Não apenas o elemento crítico como também um aspecto de certa transparência demarca a região a partir da qual as Humanidades estabelecem seu vínculo com as demais áreas do saber e, consequentemente, com as formas de manifestação da vida. Não se trata aqui de propor uma espécie de hermenêutica para as ciências naturais, por ora, uma vez que esse tema poderia ser protagonista de outro ensaio, mas de perceber o quanto a ausência de conexão entre as partes e o todo, no que concerne à produção de conhecimento, faz dos saberes das ciências exatas e biológicas algo profundamente marcado por certa opacidade hermenêutica, isto é, por certa invisibilização de seus pressupostos e pela ausência de tematização de suas bases históricas. Dito de outro modo, as ontologias regionais, aquelas que se ocupam de determinadas regiões onde se situam saberes ônticos, carecem da elucidação da historicidade que constitui indelevelmente o existir humano, historicidade que estrutura as múltiplas visões de mundo e que determina, em última instância, o modo como toda e qualquer possibilidade humana poderá se dar na vida.

Essa opacidade é condizente com o lugar a partir do qual o pensamento se funda. Se o ponto de partida é a pretensão de validade universal, a garantia de neutralidade em relação às ofertas para a sociedade civil ou o estabelecimento de paradigmas absolutos de verdade podemos afirmar que esse saber carece do papel balizador das humanidades no que diz respeito à própria posição do conhecimento na sociedade. Portanto, o que demarca tão rigidamente essas três áreas? Por que compreendê-las a partir de regiões específicas de atuação e não visando integrar todos os seus objetos em um domínio único capaz de situar as investigações em um plano que desse conta de ser também autocrítico em relação aos seus próprios objetivos e meios de validação? Como responder à primeira questão senão propondo uma nova pergunta: o que demarca tão rigidamente essas três grandes áreas de conhecimento se todas elas se dedicam ao mesmo objeto de pesquisa – o ser humano e sua vida, seu mundo?

Tal como afirma a tese historicista de Thomas Kuhn (2009, p. 129), o próprio método indutivo para as ciências, amplamente utilizado como critério de demarcação na comunidade científica, não resistiria a um exame histórico. Isso ocorre porque todo conhecimento possível se funda sobre uma base comum formada a partir de valores, crenças, modelos e demais aspectos que, sendo parte daquilo que configura uma tradição, estão enraizados na concepção de historicidade. A história, segundo Kuhn, é justamente aquilo que torna evidentes os desacordos epistemológicos e metodológicos existentes no conhecimento. Dessa forma, afirmar que o método indutivo não resistiria a um exame histórico é evidenciar que ao partir de enunciações e fatos singulares para alcançar, a partir deles, hipóteses universalmente validas, é o mesmo que extrair condições de verdade a partir de compreensões isoladas que nem sempre podem refletir a realidade comum. Dito de outro modo, aceitar como universais premissas oriundas de bases singulares é negligenciar o fato de que tais bases são perpassadas por um fundo historicista que estrutura aquela forma particular de ver e compreender o mundo; é negligenciar o fato de que há estruturas prévias que condicionam as mais variadas possíveis experiências na vida, como o local de nascimento e o contexto histórico vivido; é, por fim, esquecer que crenças, valores, gostos etc. são manifestações de uma tradição viva, atuante e determinante dos comportamentos humanos, ou seja, são vozes que, por um lado, ecoam a impessoalidade da vivência cotidiana ou que, por outro, afrontam os preconceitos sedimentos por essa mesma tradição.


Representação de um quark


Qual é, portanto, o lugar do conhecimento? Se aceitamos o que foi expresso até aqui, as tradicionais divisões em áreas específicas do saber buscam situar o conhecimento como se houvesse um lugar de pertencimento originário a cada campo investigativo, a cada disciplina, a cada estudo que vem a ser desenvolvido. Tais demarcações tão rígidas não são apenas arbitrárias, uma vez que negligenciam o caráter cosmovisionário do conhecimento em si, como também fragmentam uma totalidade que não é e não pode ser apreendida a partir de estratos específicos. Nesse sentido, o lugar do conhecimento é o nexo que permite a integração de cada parte com o todo, isto é, trata-se do lugar onde os vínculos de sentido se estabelecem e confluem para a formação de uma semântica do mundo, que torna possível falar, compreender e perceber a realidade. Dito de outro modo, é o que nos permite um diagnóstico do presente com base em um exame crítico enraizado na historicidade que o sustenta.

De nada adianta visões de mundo meramente subjetivas ou desvinculadas desse todo significativo, uma vez que o lugar de origem da significatividade mesma que permeia a vida é a atitude de espanto e admiração – fonte geradora do conhecimento – diante de uma experiência que é incessantemente intersubjetiva: a autonomização da vida e a capacidade humana de compreendê-la na precisão numérica e microscópica de um quark e de, ao mesmo tempo, deter-se ante ao abismo de incompreensão que resguarda os mistérios metafísicos.

Logo, ao acrescentar conclusões novas, que podem ou não ser verdadeiras, a premissas reconhecidamente verdadeiras, o método indutivo resguarda um fundo opaco em relação à possibilidade de seus próprios resultados, opacidade que acompanha, como um rastro impossível de ser apagado, a capacidade de compreensão humana em todas as suas dimensões. Apesar de a premissa inicial, por ser tomada como uma espécie de pressuposto epistemológico e metodológico do conhecimento porvindouro, não ter suas bases históricas suficientemente evidenciadas e postas à prova pela comunidade científica, é justamente ela que permite a aderência com a sociedade civil e, consequentemente, com um campo de atuação significativamente válido para que seus resultados possam ser aplicados.

Dessa forma, o que viabiliza os possíveis graus de aderência de toda e qualquer teoria com o mundo ao qual ela visa se aplicar é justamente a historicidade que a constitui: o quanto um paradigma epistemológico pode ou não dar conta de responder às demandas de uma determinada época é algo que só pode ser respondido por meio da averiguação de sua base histórica. Esse mesmo critério é o que une todas as humanidades entre si, isto é, se tivermos em mente que a historicidade é o ponto de contato comum entre as múltiplas disciplinas abarcadas por essa grande área, podemos alcançar o fator de integração entre os variados campos do saber e, consequentemente, reconhecer que o lugar do conhecimento é, antes de tudo, o não-lugar, isto é, aquele que escapa às infindáveis tentativas de determinação da performance humana frente ao seu potencial de espanto e de admiração.


Referência citada

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2009.



SOBRE A AUTORA



Deborah Moreira Guimarães é mestre (2014) e doutora (2019) em Filosofia pela UNIFESP. Atua como editora deste blog e do periódico acadêmico Ekstasis: revista de hermenêutica e fenomenologia.

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