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Notas para uma Ecofenomenologia dos Povos Originários da Terra (Parte II)

Ecoespiritualidade, Presença e Niilização da Vida



Se a era técnico-colonial é fundamentada por um saber exploratório que niiliza a dimensão ontológico-espiritual da vida, onde podemos colher linhas de fuga?

Nesta introdução buscaremos uma ecofenomenologia dos Saberes Originários dos Povos da Terra por entendermos que, estes Povos resguardam em seus Saberes um Modo Originário de Ser Terra. Sim, somos Terra, e este também é mais um elemento que a Era Técnica nos faz perder de vista. Como nos diz Leonardo Boff em Ética e Ecoespiritualidade, “somos a Terra no seu momento de autorrealização e de autoconsciência. (...) temos a mesma origem e com o mesmo destino de todos os demais seres e da Terra. (Por isso é necessário sentir-se) como a mente consciente da Terra, um sujeito coletivo, para além das culturas singulares e dos estados-nações. (...) Ter esquecido nossa união com a Terra foi o equívoco do racionalismo em todas as suas formas de expressão. Ele gerou a ruptura com a Mãe. Deu origem ao antropocentrismo, na ilusão de que, pelo fato de pensarmos a Terra e podermos intervir em seus ciclos, podemos colocar-nos sobre ela para dominá-la, dispor dela a seu bel-prazer. O ser humano precisa refazer essa experiência espiritual de fusão orgânica com a Terra, a fim de recuperar suas raízes e experimentar sua própria identidade radical. Essa experiência de que somos Terra produz uma espiritualidade e uma política”. [i]

Davi Kopenawa em A Queda do Céu [ii] nos ajuda a compreender o fenômeno de niilização da Vida [iii], do esvaziamento espiritual e ontológico que o Real passa através do paradigma Racional-Técnico. Para o xamã, o modo de relação explorador/desrespeitoso da Vida que a humanidade-técnica abre poderá desembocar na extinção de todas as formas de Vida presentes na Mãe Terra. Isto aponta para a compulsão técnica na entificação/reificação do Ser [iv], onde, desenraizada de um Saber Originário da Terra, as medidas para uma ética habitacional-relacional se perdem. Há um conto que retrata essa desconexão desrespeitosa para os Incas [v]:


“A MALDIÇÃO DA FOLHA DA COCA

‘Assim como o homem branco destrói a folha da coca, a folha da coca destruirá o homem branco’ [vi]

No império Inca, tudo girava em torno das folhas sagradas da coca. Eram usadas como moeda de troca, como oráculo e, principalmente, em cerimônias ritualísticas para contatos espirituais. Os sacerdotes, após mascarem as folhas entravam em êxtase com o espírito “Cocamama”. Outra utilixação espiritual simples era o ato de jogar as folhas no chão para invocar divindades, como Viracocha.

Ainda nos tempos antigos, no templo da Coca localizado no Perú os homens de medicina utilizavam para o transe, para afastar espíritos maléficos e induzir sonhos sagrados. O espírito da planta, Coca Mama, era honrado neste templo promovendo uma conexão íntima com o sagrado feminino, com a energia solar, com a cura e contemplação.

Fato histórico é que o conquistador Pizarro, através de ordens aos soldados espanhóis, destruiu o templo consagrado a essa divindade e ordenou que queimassem as plantações para desestruturar o modo de vida da população nativa e inserir uma forma de trabalho tão cruel quanto a escravidão da população africana.

Há, porém, uma lenda sobre a destruição do templo que diz que sacerdotes incas amaldiçoaram os destruidores e seus descendentes. ‘Assim como o homem branco destrói a folha da coca, a folha da coca destruirá o homem branco’. A Deusa se veste de branco, assim como a pele dos que macularam seu templo, e inicia a vingança por todo ódio e destruição.

A cocaína, não a coca, é uma maldição. A utilização da cocaína sim levará a destruição, desagregação de relações interpessoais, problemas de família, convulsões e mortes, tanto por overdose de usuários quanto pelos riscos de morte que correm milhares de jovens em situação de vulnerabilidade atraídos pelo narcotráfico. O mesmo espírito que inspira amor, elevação e contato com o divino trás as duras consequências para aqueles que dão mau uso ao seu corpo sagrado.

Sabendo disso, reflita sobre como utilizamos as plantas de poder. O Pai Tabaco é honrado? O Pai Rapé? Todas elas possuem os seus dois lados e o que determina qual deles iremos acessar é o intuito com o qual nos apresentamos diante delas.”

Catarina Nhimbopyruá durante Vivência de Fitoterapia Indígena na Aldeia Tapirema.


Intuito é a palavra que o sábio usa; a palavra intuito aponta para um fundamento da Fenomenologia: intencionalidade. O que se intenciona define o que irá ser acessado/desvelado. Toda consciência é consciência de. A manifestabilidade de algo como algo depende da intencionalidade em questão. Quando Heidegger descreve a Diferença Ontológica (ser não é ente), está nos dizendo que não é a materialidade do ente que o define. São os saberes [vii] que atuam como condição de manifestabilidade de algo como algo, da abertura do ser dos entes na relação com o ser humano. É a perda desses saberes, que enraízam a materialidade das plantas de poder em práticas sagradas de cura [viii] que se apropriam viciosamente/compulsivamente do homem branco. É a abertura desrespeitosa de um espaço sagrado da Vida que aprisiona o Homem.

Como indicativo das diferentes formas de acesso à realidade que diferentes saberes nos abrem, irei me deter na relação curadora com a Natureza.

No paradigma técnico, o modo de cuidado das enfermidades do corpo e da alma são levados a cabo, em sua grande parcela, pela indústria farmacêutica-técnica. Esta, que vende (literalmente) a cura para o corpo e o espírito, é alavancada para o combate do sintoma da desarmonia da Vida graças ao capitalismo e às custas do apagamento das Sabedorias de Cura Originárias da Terra. Combate o sintoma pois, a indústria farmacêutica vende a lida de cuidado com a depressão, mas não consegue combater a própria depressão, pois está é um estado de presença: o desequilíbrio bioquímico é apenas a manifestação material deste estado espiritual/de presença; mas como o meio de acesso é a própria ciência-técnica, tudo o que ela consegue acessar diz respeito de uma pequena parcela do constituinte material do fenômeno da depressão.

Há tempos mil antes da farmacologia-técnica, os Povos Originários da Terra carregavam consigo saberes de cura. O que perdemos aqui?

Do eco da sabedoria das plantas no candomblé fusionada no Brasil com o xamanismo, temos o advento de curandeiras, parteiras, benzedeiras e rezadeiras. Essas cuidadoras não aprendiam a curar lendo manuais médico-técnicos ou bulas de remédios [ix], então como conseguiam curar sem o Deus-Técnica oferecer a “solução” para as mazelas da humanidade?

Elas ouvem/colhem [x] na própria Natureza a cura. Não apenas através da tradição oral que legou o saber da prática de cura para elas, mas as curandeiras possuem um próprio modo de presença relacional com a Realidade que, em seu silêncio, se tornam canal de manifestabilidade da possibilidade de Ser cura possível das plantas, por exemplo.

Catarina Nhimbopyruá e Awá Tenondeguá durante Vivência de Fitoterapia Indígena na Aldeia Tapirema.


A título de exemplo: também podíamos falar da cura através do som, que a música xamânica traz, a cura através de banho, inalação e defumação que o candomblé nos abre nas Plantas.

Quando vemos o processo de cuidado dos Povos Originários da Terra descobrimos que o que está em jogo ali é um modo de presença de respeito e amor com os outros seres vivos, e que é justamente esta harmonia que abre este canal de Sabedoria. Não é exploração da Natureza, é ouvir no silêncio do Ego o que a Natureza nos diz. Como diz um certo poeta-xamã [xi]:

Eu ouço o silêncio da mata

Ouço o silêncio do vento

Eu ouço o silêncio

Do meu pensamento


É no silêncio que Deus está

Com ele eu vou me encontrar


Eu ouço o silêncio da noite

Ouço o silêncio do dia

Eu ouço o silêncio

Da harmonia


É no silêncio que Deus está

É nele que eu vou me firmar.


Para salvarmos o Destino da Humanidade contra as mazelas da Era Técnica, contra o mundo das imagens, das ilusões, do predomínio da Matéria, é urgente que possamos restabelecer o eixo da experiência humana pautada nos Saberes Originários da Terra, em todas as nossas ciências, políticas, relações no geral. São os Saberes Originários da Terra que residem os indicativos da própria salvação da Vida na Terra.

A ecofenomenologia dos Povos Originários da Terra não é um conjunto de informações acerca da natureza, muito pelo contrário, é um Saber que abre a realidade de um modo específico, através da fundamentação de um modo de presença próprio, uma posição relacional de habitação na Terra que a permite Ser/se mostrar em lógicas e paradigmas distintos dos quais estamos acostumados com a Consumação Científico-Técnica.

É necessário um processo de Descolonização, dialogando (não com uma cega nostalgia) com os Povos Originários da Terra, para que possamos rearticular nosso nexo vital com a Mãe-Terra, com o Todo que somos parte, só assim podemos nos ancorar em um Saber que redirecione nossos paradigmas espirituais, éticos, políticos da presença [xii] humana e suas relações.


Meto terno por diversão

É subalterno ou subversão?

Tudo era inferno, eu fiz inversão

A meta é o eterno, a imensidão


Como abelha se acumula sob a telha

Eu pastoreio a negra ovelha que vagou dispersa

Polinização pauta a conversa

Até que nos chamem de colonização reversa


Emicida - Eminência Parda (part. Dona Onete, Jé Santiago e Papillon)


O Futuro É Ancestral. [xiii]

Ou não existirá.



REFERÊNCIAS

[i] BOFF, L. Ecoespiritualidade: ser e sentir-se Terra. In: Ética e Ecoespiritualidade. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011. p. 72 e segs. [ii] Cf KOPENAWA, D. & ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. [iii] Cf CABRAL, A. M. Niilismo e Hierofania: Uma abordagem a partir do confronto entre Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o Deus não-cristão, volume 1. Rio de Janeiro: Mauad X, Faperj, 2014. 2v. [iv] CASANOVA, M. Existência e Transitoriedade: gênese, compreensão e terapia dos transtornos existenciais. Rio de Janeiro: Via Verita, 2021. [v] Autoria desconhecida, mas creditada a Khana Chuyma: https://altamontanha.com/coca-a-folha-sagrada-dos-incas/#:~:text=%E2%80%9CQuando%20quiserem%20olhar%20para%20o,a%20coca%20ir%C3%A1%20destru%C3%AD%2Dlos. [vi] Como aponta Eduardo Viveiro de Castros, homem branco é o correlato de inimigo, a partir do epistemicídio dos povos originários; homem branco é o contrário de Índio, povo amigo. CASTRO, E. V. O Recado da Mata. Prefácio de: KOPENAWA, D. & ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 12-3.

[vii] ἐπιστήμη [Epistemologia; conhecimento]. Cf. HEIDEGGER, M. A Questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Editora vozes, 2012, p. 17. [viii] A este fenômeno se dá o nome ritual. Um rito é um saber que posiciona uma prática para a abertura de um modo sagrado possível de ser.

[ix] A prática curandeira é mais antiga do que a farmacologia técnica, vale ressaltar. [x] Cf. HEIDEGGER, M. Logos (Heráclito, fragmento 50). In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Editora vozes, 2012. [xi] JARBAS, T. Hinário “Deus no Silêncio”. Origem Desconhecida, 2015. URL: https://soundcloud.com/beijamima/37-deus-no-sil-ncio-tony

[xii] A respeito da noção de presença, Cf. “A Perplexidade da Presença”, de Marcia Sá Cavalcante Schuback, In: HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.

[xiii] Como nos lega Katiúscia Ribeiro.



SOBRE O AUTOR

Psicólogo (PUC-SP - ProUni), especialista em Psicologia Fenomenológica e Hermenêutica (Instituto Dasein) e Coordenador Acadêmico do Instituto Dasein. Co-criador do Coletivo Outro Pensar, grupo de estudos não hierárquico do Instituto Dasein, que visa a polinização da fenomenologia hermenêutica como estilo de análise em interface com: ética daseinsanalítica e clínica ampliada, Historicidade e questões contemporâneas, Ecofenomenologia e Espiritualidade. Integrou oColetivo Organizador da Semana Acadêmica de Psicologia e Fenomenologia da PUC-SP (desde sua criação em 2017 até sua quarta edição em 2020). Atualmente se dedica principalmente ao estudo dos seguintes assuntos: (r)existências periféricas e produção de valores; ecofenomenologia em interface com os saberes e práticas de cuidado dos povos originários da terra; sofrimento existencial, historicidade e contemporaneidade; daseinsanálise e práticas psi.; ciência, natureza, ontologia e técnica.


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