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O mito de Sísifo, de Albert Camus, e a poética da clínica do absurdo

Atualizado: 7 de jan. de 2021


por

Hugo Manuel Morales dos Reis

Nathã Henrique Ferreira Anunciação



No homem estão unidos criador e criatura: no homem há matéria, fragmento, abundância, lodo, argila, absurdo, caos; mas no homem há também criador, escultor, dureza de martelo, deus-espectador e sétimo dia – vocês entendem essa oposição?
Friedrich Nietzsche - Além do Bem e do Mal



INTRODUÇÃO


O presente ensaio tem por finalidade explicitar o conceito de absurdo presente na obra de Albert Camus, criando uma série de ligações com outros pensadores, talvez até mais influentes no campo da psicologia, procurando estabelecer relações, sobretudo, com Martin Heidegger e sua fenomenologia existencial. A ideia aqui é desvelar o conceito de absurdo que circunda nossas existências e propor, a partir desta constatação indelével do absurdo, uma prática clínica que proceda de uma atitude que abrace o absurdo como um fenômeno propriamente humano, a partir do qual seja possível apropriar-se de novos sentidos e compreensões de mundo. Para isso, nos apoiaremos numa solução que parte do próprio Camus dentro da obra em questão – a arte – buscando pensamentos que fundamentem a incorporação da arte, sobretudo, da poesia, neste campo hermenêutico aplicado à Psicologia.



Explicitando o absurdo

A ideia de absurdo é marcante na obra do escritor franco-argelino Albert Camus, mas é no ensaio filosófico O Mito de Sísifo que ela ganha contornos e um corpo mais teorizado, por assim dizer. Nesse pequeno ensaio, Camus (2017) discorre sobre a ideia de uma vida absurda e ilustra esse conceito com o mito de Sísifo, um ser condenado a rolar uma enorme pedra montanha acima por toda uma eternidade, repetindo esse ato continuamente, uma vez que, a certa altura, em sua subida a pedra vem a se precipitar montanha abaixo e o labor recomeça. O labor não tem fim, retratando assim uma vida absurda.

Essa ideia de repetição é transposta para nossa vida cotidiana, para nossos repetidos esforços de manter uma rotina repleta de afazeres. Essa repetição acaba por esvaziar todos os sentidos desses gestos cotidianos e assim seguimos até nos perguntarmos o porquê de tais repetições diárias. Esse porquê acaba por deflagrar o absurdo no qual nos encontramos vivendo, uma vez que existimos sem um sentido prévio, tendo em nosso horizonte, sempre se aproximando, a assombrosa presença da morte. É dessa interrogação frente à vida que passamos a ter dimensão do absurdo. Assim, Camus (2017) quer nos dizer que a grande tragédia da vida é ter consciência de que esta é um absurdo.

Camus (2017) aponta, portanto, para um abafamento dessa sensação absurda por meio do cotidiano, onde nos refugiamos para escapar da interrogação desveladora, que acaba por romper com as certezas que nos tranquilizam:


Albert Camus (1913 - 1960)


Numa esquina qualquer, o sentimento do absurdo pode bater no rosto de um homem qualquer. Tal como é, em sua nudez desoladora, em sua luz sem brilho, esse sentimento é inapreensível [...] Em certas situações, responder “nada” a uma pergunta sobre a natureza de seus pensamentos pode ser uma finta de um homem. Os seres amados sabem disso. Mas se a resposta for sincera, se expressar aquele singular estado de alma em que o vazio se torna eloquente, em que se rompe a corrente dos gestos cotidianos, em que o coração busca em vão o elo que lhe falta, ela é então um primeiro sinal do absurdo. (CAMUS, p. 25 e 27, 2017)

Esse refúgio no cotidiano apontado por Camus muito nos faz pensar na ideia de queda em Heidegger, onde o autor nos traz as dimensões do pessoal e impessoal, e, de certa forma, essa ideia se replica aqui. Trata-se dessa queda no impessoal que permeia o cotidiano e nos afasta de uma relação mais própria com o mundo, com o absurdo que somos, com a angústia que somos a partir de nossa existência, de nosso ser-no-mundo.

Segundo Heidegger (2005), ser e mundo não se separam, não se distinguem, são duas sentenças unidas, portanto somos um com o mundo por meio de nossa consciência. Em O mito de Sísifo, Camus tampouco faz essa distinção entre homem e mundo, entre Sísifo, a pedra e a montanha. O absurdo se encontra instalado nessa relação, nessa correlação estabelecida desde o momento em que temos consciência aberta para as vozes do absurdo, desde o momento em que somos capazes de interrogar nossa própria existência. Nesse sentido, Camus (2017, p. 34 e 41) nos diz:


Porém, o mais absurdo é o confronto entre o irracional e o desejo desvairado de clareza cujo apelo ressoa no mais profundo do homem. O absurdo depende tanto do homem quanto do mundo [...] Não pode haver absurdo fora de um espírito humano. Por isso o absurdo acaba, como todas as coisas, com a morte. Mas tampouco pode haver absurdo fora deste mundo.

Esse trecho em questão nos remonta, também, à ideia que atormenta o ser humano contemporâneo; a ideia do irracional. Para Camus, uma das principais características do absurdo é a de não poder ser apregoado em sistemas lógicos e racionais, mostrando-se além de uma explicação prática e categórica. É aqui onde o ser humano moderno, o ser humano científico arranca os cabelos. Esse ser humano, o qual autores como Nietzsche e Heidegger já descreveram como um ser que busca a verdade absoluta na relação entre ser humano e mundo, não encontra maneira de olhar para a irracionalidade com a qual o absurdo se manifesta em nossas vidas, rompendo com uma série de certezas e verdades as quais se acreditava serem perenes.

Voltando ao ser humano e ao mundo absurdo, ideia na qual nos apoiamos em Camus e Heidegger, podemos também trazer à discussão o pensamento sartreano. Para o filósofo francês, essa sensação que nos toma de assalto tem outro nome, ele a chama de Náusea. Para Sartre, a náusea também está ligada ao mundo que nos cerca e que é recoberto por uma capa de significados que nos parecem familiar e nos situa existencialmente, todavia, em determinados momentos, esse véu se precipita e o mundo se nos mostra de outra maneira. Sartre diz então que os objetos perdem seu significado usual e todas as formas lhe parecem indistintas. O mundo muda quando a náusea se instala e já não o reconhecemos, o mundo é então o desespero que somos frente ao que se mostra irreconhecível, a falta de familiaridade que nos obriga a procurar novos significados e sentidos para o que se mostra (SARTRE, 2011).

Essa estranheza entre ser humano e mundo é trazida por Camus (2017, p. 28), quando o autor nos diz:


Um grau mais abaixo e surge a estranheza: perceber que o mundo é “denso”, entrever a que ponto uma pedra é estranha, irredutível para nós, com que intensidade a natureza, uma paisagem pode se negar a nós [...] O mundo nos escapa porque volta a ser ele mesmo. Aqueles cenários disfarçados pelo hábito voltam a ser o que são. Afastam-se de nós. Assim como há dias em que, sob um rosto familiar, de repente vemos como uma estranha aquela mulher que amamos durante meses ou anos, talvez cheguemos a desejar aquilo que subitamente nos deixa tão sós. Mas ainda não é o momento. Uma coisa apenas: essa densidade e essa estranheza do mundo, isto é o absurdo.

Sísifo, de Tiziano, 1549

Na mitologia grega, Sísifo (Σίσυφος, transl.: Sísyphos), era filho do rei Éolo e de Enarete.


Estando homem e mundo unidos neste estranho absurdo que por vezes se faz visível, é certo afirmar que esse sentimento existe em nós e se mostra amortecido por tudo o que nos atravessa cotidianamente e nos afasta desta constatação. Assim, o ser humano convive com o absurdo durante toda sua existência. Dessa forma, o absurdo nos é uma possibilidade de aparição até o momento em que nos encerramos enquanto existentes, ou seja, até o momento de nossa morte (CAMUS, 2017).

É justamente a consciência de nossa finitude que nos impulsiona a empreender, a criar e a buscar uma vida de experiências autênticas. É ela também que nos escancara a face mais angustiante de nossa condição: o nada. Somos essencialmente esse nada que nos é parte, que nos acompanha, já que não podemos estar seguros de ser uma totalidade. Somos seres em construção, radicalmente livres para ser, tendo que conviver com a morte como horizonte indelével, o qual, por vezes, tentamos nos esquivar, refugiando-se no sedutor, alienante e tranquilizador mundo impessoal (HEIDEGGER, 2005).

Nossa condição como nada, como seres-para-a-morte, também traz em seu cerne algo de absurdo, uma vez que o projeto que somos é radicalmente encerrado pela morte. Com isso em mente, citamos Beaufret (1976, p. 24 e 25):


[...] contudo, este sentimento que nos põe profundamente à prova é o mesmo que nos arranca da insipidez da banalidade da vida cotidiana [...] O homem como ser-no-mundo é o mesmo que a morte incessantemente amadurecendo dentro dele como o triunfo, apenas prorrogado, do nada que está por vir.

Aqui nos distanciamos de Sísifo por nossa finitude, ao contrário do personagem mítico, temos na morte o crepúsculo da consciência, e com ela morre o absurdo que somos e experimentamos enquanto existentes.

Outro fato que encontramos na filosofia existencialista e na fenomenologia hermenêutica de Heidegger e que é apontada por Camus (2017) como deflagradora do absurdo é a nossa condição de liberdade. A responsabilidade de conduzir a própria existência em um mundo abarrotado por sentidos e verdades prévias é algo absurdo, mas é também, assim como a morte, um de nossos grandes trunfos frente ao absurdo, sendo também através dela que temos a possibilidade de uma existência singular. Talvez seja justamente aí que resida o que a caracteriza como um fardo; a responsabilidade de escolher e significar nossos próprios caminhos existenciais.

É nesse ponto que a responsabilidade e o cuidado com a existência se encontram dando a esse modo filosófico de pensar contornos que o afastam de um vago pessimismo do qual o acusam, como nos mostra Sartre (2012). É dada ao ser a possibilidade de viver uma vida genuína a partir de sua liberdade e da consciência de sua finitude, que o apela a buscar modos de ser a cada vez autênticos, fazendo com que as certezas dos cenários cotidianos venham ao chão, e o absurdo, a náusea e a angústia se apresentem.

É preciso viver apesar do absurdo, apropriar-se dessa nossa condição de Sísifos modernos. É aqui que tornamos esse destino de “nada ser” uma possibilidade de ser, um estado de ser aberto, como seres transcendentes, que mobilizam sentido. Aqui nos tornamos donos e senhores de nossas existências, abraçados ao absurdo que nos pertence:


Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Sua rocha é sua coisa. Do mesmo modo, o homem absurdo, ao contemplar o seu tormento, cala todos os ídolos. No universo repentinamente silenciado, uma multidão de pequenas vozes maravilhadas se eleva da terra. Clamores inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, eles são a contrapartida necessária e o preço da vitória. Não há sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim, e seu esforço não acabará jamais. Se ele tem seu destino pessoal, não tem nenhum destino superior ou ao menos só tem um destino que julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe ser senhor dos seus dias. Neste instante sutil no qual o homem retorna à sua vida, Sísifo, regressando para a sua rocha, contempla essa sequência de ações desvinculadas que se tornou seu destino, criado por ele, unido sob o olhar de sua memória e em breve selado por sua morte. Assim, convencido da origem totalmente humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, ele está sempre em marcha. A rocha ainda rola. Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e ergue as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Esse universo, doravante, sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz (CAMUS, 2017, p. 124).

Tendo caracterizado o sentimento e o conceito de absurdo presentes na obra de Camus, apoiados também em outros pensadores, encerramos esta parte cientes de que o absurdo somos nós, em nossa relação com o mundo, dentro de nossa própria existência finita que é marcada radicalmente pela liberdade de construir mundos sem garantias de êxito de nenhuma natureza. Tendo consciência da vida e do ser humano absurdo, regressamos à nossa condição inexorável e propomos uma vida que parta do absurdo, sem negá-lo, sem suprimi-lo, ou seja, sem negar e suprimir nossa própria existência, nosso próprio caráter enquanto ser-no-mundo.

Como psicólogos clínicos, norteados pela abordagem fenomenológica existencial, propomos uma Clínica do Absurdo, ou seja, a construção de uma atitude clínica fenomenológica hermenêutica e existencial que tenha no absurdo um ponto de partida, tendo em vista que a falta de sentido revelada pelo absurdo é o que demanda as buscas por psicoterapia, o rompimento com as pequenas e grandes certezas que aparatam nossa vida cotidiana, a presença imensurável do nada. Assim, proporemos a partir de agora uma atitude terapêutica pautada em alguns dos pensadores já citados, tendo na arte, sobretudo na poesia, uma ferramenta de atuação.


A poética do absurdo

Descrever, eis a suprema ambição de um pensamento absurdo. Também a ciência, chegando ao fim de seus paradoxos, deixa de propor e se detém para contemplar e desenhar a paisagem sempre virgem dos fenômenos. O coração aprende assim que a emoção que nos transporta até as diferentes facetas do mundo não nos vem de sua profundidade, mas de sua diversidade. A explicação é inútil, mas a sensação perdura e, com ela, os incessantes chamados de um universo inesgotável em quantidade. Agora se entende o lugar que ocupa a obra de arte.

Albert Camus - O mito de Sísifo.


Nietzsche, citado por Camus (2017), diz que somente a arte pode nos salvar ante a verdade. Qual verdade seria essa? A de que somos Sísifo? Camus diz que não se pode negar a guerra, que nela se vive ou se morre e o mesmo se dá para com o absurdo, não se pode negá-lo, ele está no ar que respiramos.

Camus (2017, p. 37) aponta que somente a arte é capaz de lidar com o irracional e como ilógico ao dizer: “[...] o sistema mais fechado, o racionalismo mais universal, sempre acaba batendo no irracional do pensamento humano”. Desta maneira o filósofo nos convida a uma postura menos científica diante dos fenômenos humanos, como também propõe a escola heideggeriana. O autor escreve:


Só o equilíbrio entre a evidência e o lirismo nos permite aceder ao mesmo tempo à emoção e à clareza. Num assunto ao mesmo tempo tão humilde e tão cheio de pateticismo, a sábia e clássica dialética tem que dar lugar, penso, a uma atitude de espírito mais modesta que proceda ao mesmo tempo de bom-senso e da simpatia [...] Explicam-me este mundo com uma imagem. Então percebo que vocês chegaram à poesia: nunca poderei conhecer. Tenho tempo para me indignar? Vocês já mudaram de teoria. Assim, a ciência que deveria me ensinar tudo acaba em hipótese, a lucidez sombria culmina em metáfora, a incerteza se resolve em obra de arte.

Camus, grande romancista e escritor de peças teatrais, ou seja, mais artista do que filósofo, defendia a ideia de que pensamos por imagens e só assim podemos aceder ao mais profundo de nossos pensamentos. Essa forma peculiar de pensar o leva para a poesia e para as artes como forma de apreender o absurdo, de criar ao redor dele, de poder contemplá-lo apesar da vertigem que se instaura. Aqui também chegamos em Heidegger que possuía grande afinidade com a poesia.

Heidegger (2005) diz que o pensamento é originalmente poesia, sendo esta a essência da linguagem, através da qual o ser pode mostrar-se autenticamente, para o pensador alemão a palavra é a “morada do ser” e os poetas, seus guardiões.

Nietzsche (2012) aponta que a busca metafísica, por se tratar de uma verdade absoluta, gera no homem um desprezo pelo mundo das aparências. É julgado mal, em nosso tempo, o homem que não preza pelo olhar da razão e, assim, as interpretações do mundo passam a ser atravessadas por essa maneira de olhar, banhada pela luz da razão e da lógica. Ainda Nietzsche (2012, p. 56) escreve que “se quisesse abolir totalmente o ‘mundo das aparências’, admitindo que isso seja possível, não ficaria de nossa ‘verdade’ senão um ‘nada’”. O filósofo alemão credita aos artistas um olhar que transcende o viés metafísico, sem desconsiderar as aparências do mundo.

Assim também o faz van den Berg (1973, p. 77), o qual aponta para os poetas e para os pintores como sendo fenomenologistas natos; referindo-se a arte de apreender e transmitir sentidos. Em um trecho ele diz:

As coisas têm algo para nos contar: isto é muito conhecido pelos poetas e pelos pintores; por isso que os poetas e os pintores são fenomenologistas natos, ou melhor, somos todos nós fenomenologistas natos; mas são os poetas e pintores entre nós que são capazes de transmitir seus pontos de vistas para os outros, processo este também tentado, laboriosamente, pelo fenomenologista profissional.

Gastón Bachelard (1993) diz que a poesia tem grande valia na compreensão dos fenômenos humanos, pois ela carece sempre do frescor de uma imagem, é uma arte repentina de observação. A boa poesia é para ele aquela poesia que dispensa o passado, ou seja, que nasce livre dos conceitos e da historicidade que atravessam e sedimentam o mundo em nossa relação com ele, sobrepondo-se ao que se mostra. A poesia tem uma liberdade que a linguagem científica não nos pode oferecer, a poesia não esbarra no irracional do pensamento humano, como diz Camus, ela existe a partir dele. Dessa maneira, o ser humano expressa mais nitidamente como é tocado pelo mundo por meio da poesia, com a qual pode ampliar as significações de suas experiências existenciais.

Martin Buber se utiliza de descrições poéticas para registrar tais experiências no livro Encontros: fragmentos autobiográficos, no qual relata algumas de suas vivências a partir de descrições poéticas.

Retomando o ponto de partida de nosso ensaio, Camus (2017, p. 26), propõe o método que vai fundamentar toda a escrita de O mito de Sísifo. Segundo ele,


o método aqui definido confessa a sensação de que todo conhecimento verdadeiro é impossível. Só se pode enumerar as aparências e apresentar o ambiente. Esse inapreensível sentimento do absurdo, quem sabe então possamos atingi-lo nos mundos diferentes, porém irmanados, da inteligência, da arte de viver ou da arte pura e simples.

Camus, assim como Heidegger, Nietzsche, Bachelard, van den Berg e Buber, parece encontrar na arte uma maneira de lidar com o absurdo da vida, de apreendê-la e assim buscar por sentido e compreensão.

A seguir trataremos de um apêndice de O mito de Sísifo, no qual Albert Camus buscou na obra de Franz Kafka alguns dos elementos apresentados em seu supracitado livro.



Arte, existência e absurdo na obra de Franz Kafka

Por fim, Albert Camus (2017), no final do livro O Mito de Sísifo, dedica um capítulo para falar sobre o absurdo e a esperança na obra de Franz Kafka, escritor tcheco. Nesse capítulo, o autor concorda com Nietzsche e diz que “os grandes problemas estão na rua” e, por conseguinte, afirma que o filósofo alemão foi o único artista a ter chegado a uma estética plena do absurdo, pois sua conclusão aponta para a lucidez estéril e conquistadora que nega qualquer consolo sobrenatural, diferente dos filósofos da existência e, até mesmo Kafka em seu livro O Castelo, que em algum momento se deixam seduzir por certa esperança. Certamente quando escreveu seu ensaio, Camus não imaginava que suas ideias seriam relacionadas a uma proposta que visa pensar em um método clínico inspirado no absurdo, porém, vamos nos arriscar a estabelecer algumas relações que fazem sentido a essa proposta.

No décimo segundo parágrafo desse capítulo, Camus comenta que o livro O Processo de Franz Kafka é uma obra plenamente absurda, pois nada falta ali. Há o desespero lúcido e mudo e uma assombrosa liberdade de atitude. No parágrafo seguinte, ao comentar sobre O Castelo ser uma continuação de O Processo, em que Kafka oferece um remédio que não cura, mas faz retornar à vida normal, Camus diz:


Franz Kafka (1883 - 1924)



O agrimensor K. não pode imaginar outra preocupação além da que o devora. Até aqueles que o cercam se apaixonam por esse vazio e essa dor que não tem nome, como se o sofrimento revestisse assim um rosto privilegiado. “como preciso de você”, diz Frieda a K... “Como me sinto abandonada, desde que o conheço, quando não está junto a mim”. Esse remédio sutil, que os faz amar o que nos esmaga e faz nascer a esperança num mundo sem saída, esse “salto” brusco pelo qual tudo se acha mudado, é o segredo da revolução existencial e do próprio castelo. (2017, p. 80)

Esse segredo da revolução existencial, Camus vai relacionar à esperança que O Castelo nos dá, diferente de O Processo. Essa constatação fará Camus não categorizar essa obra como absurda, pois não há esperança numa vida absurda. Ele prossegue:


Em O Castelo essa submissão ao cotidiano se torna uma ética. A grande esperança de K... é conseguir que o Castelo o adote. Não tendo como chegar a isso sozinho, todo seu esforço é de merecer essa graça tornando-se habitante da aldeia e perdendo sua qualidade de estrangeiro que todo mundo lhe faz sentir. O que ele quer é um ofício, um lar, uma vida de homem normal e são. Está cansado de sua loucura. Quer ser razoável. Quer se desembaraçar da maldição particular que o torna estrangeiro na aldeia. O episódio de Frieda, quanto a isso, é significativo. Essa mulher conheceu um dos funcionários do Castelo e, se ele a faz sua amante, é por causa de seu passado. Ele extrai dela alguma coisa que o supera – ao mesmo tempo em que tem consciência daquilo que a torna para sempre indigna do castelo. Sonha-se aqui com o amor singular de Kierkegaard por Regina Olsen. Em certos homens, o fogo da eternidade que os devora é tão grande que eles chegam a queimar o próprio coração dos que o cercam. O funesto erro que consiste em dar a Deus o que não é de Deus é também o principal assunto desse episódio de O Castelo. Mas, para Kafka, parece muito não ser um erro. É uma doutrina e um “salto”. Não existe nada que não seja de Deus. (2017, p. 81)

Ou seja, o herói de O Castelo recusa uma vida própria em nome de uma identidade. Recusa sua estrangeiridade em nome de um consolo. Recusa sua vida presente em nome de uma esperança sem garantias de uma vida futura no Castelo. O absurdo tem sua lógica para iluminar a tragédia do cotidiano, o terapeuta absurdo não terá o compromisso de negar as verdades que as mãos terrenas podem tocar e, desse modo, acompanhar o paciente no processo terapêutico aceitando seus próprios limites como terapeuta e criar um modo próprio de se relacionar com o paciente que podemos chamar de absurdo, pois segundo Camus, uma obra absurda não é universal, portanto, o objetivo da clínica do absurdo é singularizar essa estrangeiridade que nos apela.

Dessa forma, podemos concluir que a prática clínica em psicologia deve romper com o dualismo exterioridade versus interioridade presente no pensamento cartesiano, buscando a apropriação de uma linguagem mais empática, menos racional, que preze pela novidade singular da fala do paciente. Prezando por uma postura que possa gerar compreensão e não explicações técnicas, lógicas e racionalistas engessadas em moldes de atuação puramente cientificistas e técnicos.


Conclusão

Depois de discorrermos sobre a ideia de absurdo e propormos uma clínica absurda por assim dizer, podemos concluir que a proposta é fazer do espaço psicoterapêutico um espaço para se olhar para o absurdo em suas mais diversas facetas, olhar para todas as rupturas causadas por essa constatação. Concluímos que a atitude do terapeuta deve se mostrar mais distante de um fazer puramente científico, sobretudo na linguagem empregada nos diálogos clínicos estabelecidos com o paciente. A poesia, atestada por diversos pensadores fortemente ligados à psicologia, seja por meio da fenomenologia ou do existencialismo, aponta para uma prática mais artística, que nos conduza a uma compreensão humana dos fenômenos. As lacunas da poesia, sua forma vaga de dizer, permite a ressonância de suas intenções, os sentidos brotam das lacunas que nos convidam a compreender uma mensagem que nos aparece na própria ação de falar, na própria acontecência do encontro. Gaston Bachelard, ao dizer que a boa poesia é a poesia que não tem passado, nos deixa uma valiosa lição; a de sermos psicoterapeutas sem passado, de forma a não sobrepor ao paciente um saber atestado com outro paciente, o encontro deve acontecer nesse inédito momento de encontro, evitando assim um exercício de encaixe de saberes de experiências passadas, não evocando o famoso “Leito de Procusto”. O ritmo poético e o ritmo terapêutico devem ser regidos pelo clima do encontro, onde, guiados por devaneios poéticos, será possível, com a força da criação, chegar a uma singular compreensão do absurdo que nos ronda, do absurdo que nos guia até a clínica, do absurdo, enfim, que somos a cada vez.



Referências citadas

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BEAUFRET, Jean. Introdução às filosofias da existência: de Kierkegaard a Heidegger. São Paulo: Duas Cidades, 1976.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 9 ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 15 ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2005.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. Petrópolis-RJ: Vozes, 2012.

SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Petrópolis-RJ: Vozes, 2012.

VAN DEN BERG, Jan Hendrik. O paciente psiquiátrico: esboço de uma psicopatologia fenomenológica. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1973.


SOBRE OS AUTORES


Hugo M. M. Reis é psicólogo clínico, graduado em psicologia pelo Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium (2019).

E-mail para contato: hugomanuel964@gmail.com



Nathã H. F. Anunciação é psicólogo clínico, graduado em psicologia pelo Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium (2018).

E-mail para contato: n.henriqueferreira95@gmail.com



Suas áreas de interesse em pesquisa abarcam a clínica fenomenológica, filosofias da existência, hermenêutica e o absurdo nas obras literárias.

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