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O sentido necessário da História para o desenvolvimento social: breve comentário


por Deborah Moreira Guimarães


Resumo

As concepções de autonomia e de liberdade são elementos essenciais para pensarmos a diferenciação entre Weltgeschichte e Historie em Kant. O discurso sobre o sentido necessário da História (Weltgeschichte) remonta à necessidade de um tratado para as finalidades últimas da espécie humana, que, ancorada na Razão, poderia alcançar um estado de equilíbrio e sociabilidade para além do caráter meramente normativo presente no que a Lei Moral representa. A doutrina teleológica da natureza circunscreve, portanto, o campo que mobiliza o pensamento kantiano aqui destacado: a ideia de razão como fio condutor para se superar a heteronomia, isto é, trata-se de compreender a liberdade como instauradora de um modo de ser voltado à comunidade global, fundado na autodeterminação da vontade.


É a Kant, e não a Hegel, que remonta a oposição entre a Historie, disciplina do entendimento, e a Weltgeschichte, discurso sobre o sentido necessário da história. (Gérard Lebrun)

A Weltgeschichte kantiana tem por finalidade última o desenvolvimento social focando a espécie como um todo, pois seu desenvolvimento não se dá nos indivíduos enquanto seres particulares. O desenvolvimento social kantiano segue, assim, uma premissa na qual todos os seres, enquanto espécie, tendem a desenvolver suas disposições naturais e atingir seus fins últimos, o que configuraria o pleno exercício da doutrina teleológica da natureza. Nesse sentido, o excerto citado no início deste breve comentário precede a seguinte afirmação: “É Kant, antes de Hegel, quem exclama: como é que a razão, presente na cena da natureza, poderia estar ausente da gesta da humanidade?” (LEBRUN, 2003, p. 71). Ora, não seria a razão o elemento que, ao longo da história, garantiria a sociabilidade tendo em vista as ideias de autonomia e de liberdade para além do caráter normativo que vincula a ação ao mero cumprimento da Lei?


Caspar David Friedrich. Caminhar ao anoitecer.


Primeiramente, nota-se que o ser humano deve se livrar de seus traços individuais com vistas a fazer parte de um todo, cujo ordenamento precisa se voltar para a prática da razão como causadora da liberdade da vontade de cada um, característica responsável pelo desenvolvimento dos seres humanos, e, consequentemente, imprescindível para a realização da História Universal.

O desenvolvimento humano, segundo Kant, deve seguir as etapas que vão do aprimoramento moral à liberdade segundo o uso da Razão. Contudo, tais aprimoramentos só podem ser observados quanto tomada a espécie em sua totalidade, o que demonstra a atribuição do sentido necessário da História a Kant e não a Hegel, cuja história do mundo obedece a premissa de que o desenvolvimento deve ocorrer nas particularidades e seguir um objetivo implícito, a ideia de Espírito, cujo ponto inicial consiste na investigação do ser enquanto ser abstrato, sem o intermédio da razão ou das formas coletivas. Hegel pressupõe, diferentemente de Kant, que é o ser em si, o próprio ser humano enquanto indivíduo, que deve ser o objeto de estudo do desenvolvimento humano e social. Desse modo, a História do Mundo Hegeliana partiria do conceito de Espírito enquanto natureza individual, e não coletiva.

Para Kant, o desenvolvimento moral, base para os fins últimos aos quais todos os indivíduos devem ser encaminhados, não se encontra, todavia, apenas no âmbito da natureza. Tais finalidades são obrigatoriamente resolvidas pela criação de uma sociedade civil, que deveria, em tese, administrar universalmente os aspectos relativos ao direito social. É a partir daí que se estabelece, na prática, o ordenamento social e jurídico de uma determinada sociedade. O desenvolvimento das disposições naturais kantianas só é atingido pelo ordenamento jurídico. Este, por sua vez, utiliza necessariamente um estado de coerção, cujo fruto – a insociabilidade – promove o desenvolvimento da natureza. Como Kant (2003, p. 11) afirma, “toda cultura e toda arte que ornamentam a humanidade, a mais bela ordem social são frutos da insociabilidade, que por si mesma é obrigada a se disciplinar e, assim, por meio de um artifício imposto, a desenvolver completamente os germes da natureza”.

Doravante, a sociabilidade deve se dar por meio do exercício da vontade universalmente válida, ou seja, aquela que representa uma ruptura em relação às vontades particulares. Assim, é evidente que todos esses meios – ou seja, a constituição política, maneira pela qual um determinado Estado desenvolve suas disposições – devem visar a realização de um plano oculto da natureza, a história da espécie humana. Se há um princípio capaz de superar o que a Lei Moral representa na sociedade, esse princípio é a autonomia, razão essencial da verdadeira liberdade. “Por ser autônomo, deixo de ser um sujeito apenas dependente, consigo compreender que a obrigação incondicional a que estou submetido nada tem de gratuito: se obedeço à Lei sem estar impelido por algum outro móvel ou motivo, é somente na medida em que posso ver-me como o próprio instituidor dela [...]” (LEBRUN, 2003, p. 73).

Logo, as concepções de autonomia e de liberdade são elementos essenciais para pensarmos a diferenciação entre Weltgeschichte e Historie em Kant. O discurso sobre o sentido necessário da História (Weltgeschichte) remonta à necessidade de um tratado para as finalidades últimas da espécie humana, que, ancorada na Razão, poderia alcançar um estado de equilíbrio e sociabilidade para além do caráter meramente normativo presente no que a Lei Moral representa. A doutrina teleológica da natureza circunscreve, portanto, o campo que mobiliza o pensamento kantiano aqui destacado: a ideia de razão como fio condutor para se superar a heteronomia, isto é, trata-se de compreender a liberdade como instauradora de um modo de ser voltado à comunidade global, fundado na autodeterminação da vontade.


Fonte: Cena do filme “Os últimos dias de Immanuel Kant”, dirigido por Philippe Collin, e escrito por Philippe Collin e André Scala.



Referências

KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LEBRUN, Gérard. Uma escatologia para a moral. Em: KANT, I. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


SOBRE A AUTORA

Deborah Moreira Guimarães é mestre (2014) e doutora (2019) em Filosofia pela UNIFESP. Dedica-se à pesquisa de temas relacionados à filosofia alemã, à fenomenologia e à hermenêutica.




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