top of page
Foto do escritorAndré Fonck e Isabella Martins

Leituras fenomenológicas da quebrada: estética da (r)existência periférica – apontamentos iniciais

Atualizado: 7 de jan. de 2021

por André Luís Macedo Fonseca e Isabella Martins de Paula


1. Fenomenologia e transvaloração


Se fenomenologia é arte transgressora que rompe e reinventa o olhar, como nos apresenta Alexandre Marques Cabral (CABRAL, 2020), pretendemos com o presente trabalho realizar uma leitura fenomenológica da quebrada. Através de visadas fenomenológico-transgressoras, dialogaremos com a periferia em meio à sua produção artística, compreendendo o rap como uma das expressões artísticas da estética existencial periférica, produção essa que desvela os sofrimentos dessa parcela da sociedade e as resistências criadoras de outras possibilidades de ser. Como afirma Merleau-Ponty:


O mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia, mas, assim como a arte, é a realização de uma verdade [...] A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo com tanta ‘profundidade’ quanto um tratado de filosofia (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 19).

O mundo enquanto significância é o que possibilita ao Dasein (Ser-aí) ser, como aponta Heidegger no §31 de Ser e Tempo, “existindo, o Ser-aí é o seu aí” (HEIDEGGER, 2012a, p. 407). Mas, se o mundo não é uma transcendência independente, como indaga Peter Pál Pelbart, “isso joga, sem jogadores” (PELBART, 2016, p. 19), de algum modo o mundo está, a cada vez, em jogo, em cada Dasein, possibilitando assim microrrupturas na malha significativa.


De saída, é necessário contextualizar que a palavra Dasein (Ser-aí) é utilizada para demarcar a distinção da visão metafísica do homem enquanto um sujeito solipsista (que possui seu ser nele mesmo, in natura, a priori), em poucas palavras, “Dasein significa que o homem não pode ser compreendido sem o seu mundo e, correlativamente, que o mundo é sempre o mundo do homem. Isso indica o fim de um sujeito solipsista” (SCHÜRMANN, 2016, p. 102). Durante os Seminários de Zollikon, Heidegger introduz esta problemática ao grupo de psiquiatras presentes de maneira direta:


Todas as representações encapsuladas objetivantes de uma psique, um sujeito, uma pessoa, um eu, uma consciência, usadas até hoje na psicologia e na psicopatologia, devem desaparecer na visão daseinsanalítica em favor de uma compreensão completamente diferente. A constituição fundamental do existir humano a ser considerada daqui em diante se chamará “Dasein” ou “ser-no-mundo”. (...) O que o existir como Da-sein significa é um manter aberto de um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se lhe fala a partir de sua clareira (HEIDEGGER, 2017, p. 34).

Se a obra de arte pode ser compreendida como acontecimento da verdade enquanto desvelamento de Ser, e, em específico, o poeta se mantém junto ao brotar do Ser, como aponta Heidegger (HEIDEGGER, 2012b), o artista assim carrega no bojo de sua arte não só o caráter de desvelamento de seu mundo como uma "mera descrição do real", mas também um germe transvalorativo, como uma força plástica em meio ao devir. Como nos retoma Lapoujade (LAPOUJADE, 2017), o mundo “pipoca” em existências mínimas, que podem ganhar densidade ontológica. É a Arte de Instaurar Modos de Existência, como nos resume Peter Pelbart:


[...] uma Arte de instaurar, ou Arte de fazer existir seres que ainda vagam na penumbra, ficcional, virtual, longínqua e enigmática. Portanto, todo seu pensamento poderia ser colocado sob o signo desse chamado por uma “obra por fazer” – e por obra não se entende aqui necessariamente obra de arte; mesmo o homem é uma “obra por fazer”, incompleta, aberta, inantecipável. Assim, em cada caso, não se trata de seguir um projeto dado que caberia realizar, mas abrir o campo para um trajeto a ser percorrido conforme as perguntas, os problemas e os desafios imprevistos aos quais é preciso responder a cada vez, singularmente. O desafio vital que se coloca a cada um de nós, pois, não é ‘emergir’ do nada, numa criação ex nihilo, mas atravessar uma espécie de caos original e “escolher, através de mil e um encontros, proposições do ser, o que assimilamos e o que rejeitamos”. Nada está dado, nada está garantido, tudo pode colapsar, a obra, o criador, a instauração[...] o trajeto vital é feito de exploração, descobertas, encontros, cisões, aceitações dolorosas (PELBART, 2016, p. 394).

A nossa proposta visa não falar sobre fenomenologia, ou até mesmo abordar de modo acadêmico-fenomenológico um assunto (mesmo cientes da importância dessas abordagens), mas, sim, fazer fenomenologia.Sabemos a imensa dificuldade desse percurso proposto, mas não temos medo de arriscar: o que importa aqui é menos buscar uma verdade absoluta ou uma explicitação conceitual filosófica completa, mas, sim, plantar sementes ou, melhor, polinizar: O destino deste trabalho? O vento.


A principal dificuldade aqui é sempre como usar a fenomenologia como ferramenta de reverberação e polinização, e não de explicação. A explicação, já de início, encerra a possibilidade de se enxergar o fenômeno tal como ele se mostra. Ela esmiúça o fenômeno até ele se tornar algo que ele não é, e numa tentativa de auxiliá-lo a se mostrar, acabamos por destruí-lo. Como cita Hannah Arendt (ARENDT, 2007, p. 13) “O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de refletir sobre o que estamos fazendo”, e complementamos: o que estamos fazendo e para quem estamos fazendo?



2. Estética da (r)existência periférica: cronistas da facticidade da favela


Eu não nasci bandido não, ninguém nasceu bandido

Eu jogava bola como qualquer um dos meus colega

Sou cria com todo mundo, cria daqui, 'tá me entendendo

Foi isso que eu escolhi pra mim

Não adianta eu me arrepender, foi o que eu quis

Eu falei, eu tenho personalidade própria

Paz eu pedia antes de ser traficante

Quando eu trabalhava que eu queria deitar

Sabendo que eu tinha que acordar 5 horas da manhã pra ir trabalhar

E não conseguia porque polícia 'tava na favela

Tinha que sair pra ir trabalhar

Me parava lá em baixo e falava que minha marmita

Que eu 'tava carregando na minha mochila

Eu 'tava escondendo pra sair do morro

O que mais me deixa revoltado

É que, porque que eles não vem na madrugada

Trocar tiro, só tem traficante na rua

Borges (Part. Flacko) - AK do Flamengo


Periferia não é apenas estar à margem geograficamente na cidade, mas diz respeito principalmente a um modo de vida, dos que estão à margem da norma de nosso mundo.

O ano é 1988, um grupo nasce em São Paulo. O que esse grupo trazia de diferente? Em uma cidade onde tínhamos uma taxa altíssima de mortes na favela (RACIONAIS MC’S, 2018), onde pobre matava pobre por rixa, um grupo de rapconsegue unir uma resistência de poetas de todos os cantos da cidade: assim surgia o Racionais MC’s. A importância desse grupo foi reunir “gangues rivais” com um grande propósito: a resistência. Como o próprio grupo afirma, a tarefa é realizar um “raio x do Brasil”. O poeta Mano Fler descreve a potência do rap de maneira sublime:


Domina a força ou degola fraqueza

Transforma em poesia a angústia de pessoas que nasceram presas

Que não aceitou ser mutilado e vem com multidões

Pra não apontar só erros não tem pro de soluções

Mano Fler (part. Fabio Brazza) - Médico da Alma


Para entender a potência poética do rap, talvez seja importante uma breve contextualização de nossa atualidade. Foucault busca compreender a realidade contemporânea através da noção de biopoder. Resumindo, na biopolítica não cabe à configuração de poder atual matar (como na soberania), mas sim fazer viver alguns, vide o caso do empresário em Alphaville (TV OSASCO, 2020) -, e já que não podem mandar matar (“os outros”, periféricos, à margem da norma do mundo), deixam-morrer esses, como já nos apontava Eduardo do Facção Central:


Por que prefere gastar no abrigo anti-nuclear No banker, goma blindada, seu novo lar Enriquecer a indústria da segurança privada Comprar colete a prova de balas do que doar cesta básica A pior polícia do mundo não vai te ajudar [...] Não vejo um puto lutando pra favela ter escola Só pra me trancar e jogar a chave fora Facção Central - Hoje Deus anda de blindado


Como aponta Peter P. Pelbart, Agamben, ao caracterizar algumas especificidades da biopolítica, comenta que a vida “passa a ser anônima e insignificante” (PELBART, 2016, p. 26). Eduardo, do Facção Central, passa a visão do seguinte modo:


Não somos só notícia número de estatística

Chora playboy com sangue da periferia

Não somos só notícia número de estatística

Cadê a campanha da Paulista na hora da chacina?


Facção Central - O Show Começa Agora


“O biopoder contemporâneo, conclui Agamben, reduz a vida à sobrevida biológica, produz sobreviventes. De Guantánamo à África, ou à Cracolândia, isso se confirma a cada dia” (PELBART, 2016, p. 25). Como nos apresenta o pensador contemporâneo Borges, em sua obra “Lei Áurea”, ressoando com o que foi explicitado até aqui:

Alguém me acorda desse pesadelo

111 tiros acertam um preto

Menor jogado com corpo no beco

Nossa pele faz nós já nascer suspeito

Ágatha, Duda, Kauan, João Pedro

E dizem que só quem morre é traficante

Guerra licenciada pelo Estado

Favela alimenta sua fome de sangue

Durmo sem saber se vou acordar


Borges – Lei Áurea


Se pudermos traçar duas linhas que constituem o rap, talvez uma seja a linha da “cartografia da dor”, e outra, uma “cartografia da resistência”. As duas necessariamente ocorrem juntas, apenas alterando suas intensidades, mas, didaticamente, esse foi o caminho que escolhemos para abordar a realidade da quebrada.

Enquanto cartografia da dor, o rap possibilitou a visibilidade da população periférica, que busca a superação da condição desumanizadora dos mecanismos de invisibilização. Uma condição desumanizadora – vide chacina policial no baile de Paraisópolis (VAIDAPE, 2019) - dificilmente faz brotar nesses indivíduos algo para além da dor, logo, a resistência também se faz escancarando de maneira ácida as desigualdades sociais, como uma vez mais o poeta Eduardo, do Facção Central, aponta:


Não queria o moleque com a faca na mão

Ajoelhando o tio grisalho, querendo seu cartão

Queria só rimar choro de alegria

Mas na favela não tem piscina, armário com comida

(...)

Quem vê violência só na tela da TV

Só vai ouvir Facção e conseguir entender

Quando tiver amarrado dentro do porta mala

Rezando pro ladrão não enfiar bala

Quando trombar a dor, vai enxergar o verdadeiro rap

O filho da puta vai sentir que a marcha fúnebre prossegue

A paz tá morta, desfigurada no IML

A marcha fúnebre prossegue


Facção Central – A Marcha Fúnebre Prossegue


Mesmo mostrando a realidade inerente à periferia, uma condição de guerra, o rap foi taxado de música que faz apologia ao crime, mas como nos aponta Djonga em Atípico, “tem quem me enxergue radical, tem quem me enxergue pedagogo”. E aqui temos mais uma face explícita da biopolítica à brasileira: para a população periférica, o grito de dor e de resistência não pode ser bradado, pois causa choque para aqueles de fora do seu contexto:


Desde pequeno geral te aponta o dedo

No olhar da madame eu consigo sentir o medo

Cê cresce achando que cê é pior que eles

Irmão, quem te roubou te chama de ladrão desde cedo

(...)

Então peguemos de volta o que nos foi tirado

Mano, ou você faz isso ou seria em vão o que os nossos ancestrais teriam sangrado

(...)

Do alto do morro, rezam pela minha vida

Do alto do prédio, pelo meu fim

(...)

Eu faço isso da forma mais honesta

E ainda assim vão me chamar de ladrão


Djonga – Hat-Trick (grifo nosso)


Baco Exu do Blues mostra como, além de cartografar a dor periférica, o rap é arte que carrega uma potência transvalorativa e de constante resistência:


Sua jaula já não me prende (há!)

Meus ancestrais todos foram vendidos

[...]

Escravizaram meu povo por dinheiro

Quero dinheiro pra não ser escravo

A lei áurea é todo verso que eu escrevo


Baco Exu do Blues – Imortais e Fatais (grifo nosso)


Aqui, nos apropriamos da noção de transvaloração (vide MASSUMI, 2020; FIGAL, 2012) visando nomear um movimento onde a significância vigente é ressignificada esteticamente, ou seja, aquele que anda de Porsche na quebrada não está apenas ostentando seu carro, ele está provando que o pobre favelado pode chegar ali e que é possível virar “o mundo do avesso”, criar um novo mundo possível, abrindo espaço para uma nova vida, uma nova subjetividade. O rap e o funk é essencialmente isso, a ostentação é mais do que “ter o poder”, Djonga diz em A Música da Mãe: “grana e buceta nunca foi o foco”. É ter isso e principalmente estar na sua quebrada dando o exemplo e passando a seguinte visão: 'cê pode crescer sem entrar no crime, mas também não ser só um refém da norma do mundo. Você pode ser artesão desse mundo. Djonga prossegue:


Eles passam na faculdade sem estudar

Postam contrariando as estatísticas

Aqui contrariar é passar dos 18 sem ser preso

E sem ser só mais um caso de algum cu da balística

Pra isso eu não posso ficar estático

Então minha escolha foi ser um ser estético

Se rap é coisa de bandido, eu roubo a mente do seu filho

E nós vê o crime ao vivo, vocês veem no Narcos México


Djonga (part. Doug Now e Chris MC) Voz (grifo nosso)



Imagem extraída da internet - vista em São Paulo


O rap também carrega em sua artilharia poético-transgressora uma potência transvalorativa, como aponta Ramonzin:


Papo reto Ramonzin, Djonga Rap é ferramenta de guerra Rap é arma E eu sei usar a arma que eu tenho


Ramonzin (part. Djonga) – Gueto Feroz (grifo nosso)




Mesmo sendo deixado de lado pela sociedade, o rap ventila e poliniza a possibilidade de resistência e de instauração de outros modos de existência, como aponta Emicida:


Num diz que eu sou marrento não, trampa mais e melhor que eu, cala a boca

Xô devolver o orgulho do gueto, e dar outro sentido pra frase tinha que ser preto

Vem pra cá ampliar a visão


Emicida – Beira de Piscina (grifo nosso)


Como apontamos no início do trabalho, o mundo não é uma transcendência autônoma que subjetiva o Dasein, mas depende de seus atores para ocorrer: os atores de veiculação da significatividade do mundo são o próprio Dasein.

O rap não é um mero gênero musical, ele inclusive não nasce com esse propósito. Tendo em seu sangue resistência e dor, o rap é uma potente “máquina de guerra transvalorativa”, mas como isso não possui explicação, encerramos trazendo novamente o poeta Djonga:


Se cada um é um universo

Quem salva uma vida salva um mundo inteiro

Seja protagonista da sua história

Pega a folha e muda o roteiro


Djonga – Oto Patamá





Referências citadas


ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.


CABRAL, A. M. Fenomenologia da transgressão. Disponível em: <http://www.institutodasein.org/pages/grupo.asp?pagina=179>. Acesso em: 17 de dezembro de 2020.


FIGAL, G. Nietzsche: uma introdução filosófica. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.


HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Campinas: Editora da Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes,

2012a.


_______. Caminhos de floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012b.


_______. Seminários de Zollikon: protocolos, diálogos, cartas. São Paulo: Escuta, 2017.


LAPOUJADE, D. As existências mínimas. São Paulo: n-1 edições, 2017.


MASSUMI, B. 99 teses para uma revaloração do valor – um manifesto pós-capitalista. São Paulo: GLAC Edições, 2020.


MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Editora WMF Marins Fontes, 2011.


PELBART, P. P. O avesso do niilismo – cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições, 2016.


RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


SCHÜRMANN, R. "O Ser e Tempo de Heidegger". In: LEVINE, S. (org.); CRITCHLEY, S.; _______. Sobre o Ser e Tempo de Heidegger. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016.


TV OSASCO. Cabo Edson explica caso de empresário de Alphaville. Direção e Produção: TV Osasco. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xTmG9rCjPXk>. Acesso em: 17 de Dezembro de 2020.


VAIDAPE, R. Homenagem e resistência no Baile da Dz7 em Paraisópolis. Direção e Produção: Revista Vaidape. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=DkcnDKPc2PU>. Acesso em: 17 de Dezembro de 2020.



SOBRE OS(AS) AUTORES(AS)



André Luís Fonseca Macedo (André Fonck) é psicólogo (PUC-SP - ProUni) e pós-graduando em Psicologia Fenomenológica e Hermenêutica pelo Instituto Dasein.



Isabella Martins de Paula é psicóloga (PUC-SP - ProUni), coordenadora de colaboradores do Instituto Dasein e aluna do curso de Pós-graduação em Psicologia Fenomenológica e Hermenêutica do Instituto Dasein.

E-mail para contato: isabella.mpaula@gmail.com.




1.781 visualizações1 comentário

1 Comment


André Fonck
André Fonck
Dec 19, 2020

❤️❤️❤️❤️

Like
Post: Blog2_Post
bottom of page