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Observações sobre a atuação da psicologia nos contextos das mídias sociais

por Felipe Miranda Zanetti



Ideias introdutórias


O item V dos Princípios Fundamentais do código de ética da psicologia afirma: “o psicólogo contribuirá para promover a universalização do acesso da população às informações, ao conhecimento da ciência psicológica, aos serviços e aos padrões éticos da profissão”. Dizendo de maneira mais simples, cabe aos profissionais de psicologia atuarem, sempre, de maneira a informar a todos com os quais tenham contato sobre o que faz e como o faz a psicologia em suas mais diversas facetas. Seguindo esse mesmo tópico do documento, o item III esclarece: “o psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural”, ou seja, todo profissional encontra-se inserido em processos históricos de construção do tecido social. Assim, toda forma de fazer psicologia precisa compreender a partir de que lugar social/histórico está construindo sua prática, pois toda prática exerce força política nas determinações das formas de ser pessoa. Assim, os psicólogos e psicólogas precisam - segundo sua ética - construir uma visão crítica acerca do que se dá tanto na sua profissão quanto nos processos sociais em seu entorno, nos quais, inevitavelmente, seus pacientes também estarão inseridos. Alexandre Cabral (2020) elucida como todo posicionamento humano, inclusive posicionamentos técnicos, não são isentos de pretensões políticas e exercem força construtiva no todo social. Política aqui, cabe ressaltar, diz respeito aos processos de influência que as forças, o poder, exercem na formação de cada sujeito humano.

Proponho-me a pensar, a partir desses dois tópicos do código de ética, utilizando-me da visão fenomenológico-existencial, qual psicologia está sendo disseminada dentro das mídias sociais a partir das influências de um sistema baseado no capital e de formas deterministas de visão do ser humano. Saliento que não discuto a partir de uma visão radical ou extrema, pois existem diversas maneiras de se fazer psicologia e de conduzir a prática clínica; trato aqui de uma tendência que venho observando ser recorrente em alguns modos de construir diálogos a partir da psicologia e dos meios de comunicação digital. Também entendo o fato de que há como fazer psicologia, no que diz respeito às mídias sociais, de uma maneira ética e coerente. Esse é o intuito do presente ensaio.


A psicologia como ciência humana


A psicologia - sobretudo a fenomenológica - caminha em uma direção diferente daquela tomada pelas ciências naturais, como bem mostra Feijoo (2017). De forma distinta do que geralmente se acredita quando se toma por base uma concepção naturalista, os fenômenos psicológicos apresentam extrema particularidade, eles escapam de definições impossibilitando fins de medidas e determinismos. A luta da ciência natural, dentro da psicologia, consiste exatamente na busca por mensurar esses fenômenos e produzir um modelo de compreensão universal, obviamente essa compreensão segue o esteio dualista tão criticado pela fenomenologia desde seu surgimento.

Embora haja um esforço constante, a psicologia falha em se delimitar como uma ciência natural por sua possível incapacidade, técnica e teórica, de mensurar e determinar um padrão humano específico que nos esclareça alguma natureza, pois “a condição humana não possui propriedades ontológicas substanciais” (Cabral, 2018, p. 58). Em palavras mais diretas, “a vida em si pode ser conhecida de modo preliminar e compreendida, nunca explicada” (Bariani, 2017, p. 111).

Toda essa busca pelo conhecer e pelo estabelecimento de unidades padronizadas tende a “criar uma relação de distância e dominação” (Foucault, 2012, p. 30), isto é, o humano parece, por vezes, querer submeter tudo o que está ao seu redor, compondo o mundo ao seu desejo. Por mais que tais saberes sejam válidos e importantes para nosso desenvolvimento social e nossa segurança humana, na psicologia, os fenômenos mais originários permanecem velados a esse tipo de saber que domina e determina. A existência configura-se sempre a partir de sua negatividade, conformando-se com um horizonte histórico já determinado previamente e com suas relações interpessoais. Nas palavras de Alexandre Cabral (2018, p. 12): “um ‘nós’ só se dá sob as marcas da temporalidade e, dessa forma, somente nossas vivências da atualidade histórica nos permitem saber quem efetivamente somos.” É possível saber o que está “sendo”, mas não o que “é”.

Sendo pura intencionalidade, “a existência não é uma coisa dotada de propriedades, mas pura performance” (Casanova, 2017, p. 31).


A psicologia como produto


“Somos incorporados no, atravessados por e condicionados radicalmente pelo mundo histórico em que somos o que fomos, quem somos e quem seremos” (Cabral, 2020, p. 30). Não há como ser fora do mundo, somos e praticamos psicologia a partir de um mundo histórico que existe sob o domínio do capital.

A psicologia, como saber imerso neste lugar, não se isenta das influências advindas desse quadro econômico/político, o saber das ciências humanas obviamente também é vendido, mas tendo em vista seu caráter diferencial do que se entende por ciência natural - garantia dos resultados e padrão de funcionamento - qual seria a funcionalidade/mercadoria dessa área do saber? É minimamente estranho pensar a funcionalidade da atuação psicológica diante de qualquer vida se for levada em conta a incerteza dos resultados, a ausência de conclusão do projeto humano e sua condição de devir; atuando de maneira funcional naturalista “toda vez que se recorta, separa, abstrai e classifica a variedade perde-se algo” (Bariani, 2018, p. 48).

O marketing psicológico parece ter convidado esses profissionais a produzirem conteúdos que comprovem sua capacidade técnica, mas como fazer esse movimento desvelando angústia? Esse movimento aparentemente se faz prescrevendo, na maioria das vezes, vida funcional, direcionando padrões que possam ser aprendidos para a modulação de uma vida adequada e satisfeita ao sucesso contemporâneo. Funcionalidade é fomentada a partir de orientações que sustentem uma plena absorção em sentidos previamente estabelecidos como adequados, não seriam vendidos de forma massiva produtos psicológicos que desvelassem a angústia e o desespero da indeterminação humana frente à sua nadidade constitutiva. O que se quer, quase sempre e na maioria das vezes, é estabilidade mediana, é decadência em um mundo fático que nos dê sossego, o que Boss (1981) reconheceu como determinantes para a culpa e/ou a angústia patológicas.


Para concluir


Feijoo (2011, p. 34) afirma que “toda e qualquer formulação teórica em psicologia acaba por encobrir aquilo que é mais originário na existência”. Para ela, há uma crise nos modos de compreensão da subjetividade moderna, sendo assim, é preciso, a partir dessa compreensão, dilatar os limites impostos pela técnica e pelas noções positivistas da vida para tornar possível um novo fazer psicológico advindo das compreensões dos modos de ser. Ela continua: “o ser-aí não tem propriedades generalizáveis e não pode, por conseguinte, ser acessado por meio de universalização” (p. 36).

“Ser plena atuação sem completar-se em meio às possibilidades realizadas - eis o caráter de performance da condição humana” (Cabral, 2018, p. 62), esse modo de ser é sempre “atravessado pelo horizonte histórico em que se encontra” (Feijoo, 2011, p. 34). Práticas psicológicas não devem romper esse limiar de compreensão do humano, pois, se assim o fizerem, construirão formas de abordar as existências a partir de pressupostos naturalizados. O que quero tratar, portanto, é a noção de que “produtos” psicológicos destinados à venda e a funcionalidade das existências não parecem ter sintonia direta com essa visão - fenomenológica - da estrutura ontológica de cada ser, servem então a uma ideia restrita de terapêutica, fórmulas inconsistentes para a constituição ôntica de existências diversas, expostas a diferentes horizontes de possibilidades.

É exigência ética sermos coerentes com a realidade da visão científica que a psicologia vem construindo durante sua história. Assim, para os fenomenólogos, esse serviço estaria diretamente ligado à tarefa de condução de cada existência à noção de ausência de conclusão e indeterminação de seus modos de ser. Qualquer orientação que possa direcionar ou prescrever condutas, precisa ser feita a partir de uma análise muito minuciosa e precisa de cada processo de subjetivação.

Por fim, é preciso compreender melhor qual é o lugar da psicologia, e sobretudo dos fenomenólogos, na construção de espaços digitais que possuam como foco a produção de conteúdo, inclusive de marketing, no ramo das ciências humanas. Reflexões, provocações e falas críticas sempre são possíveis, o que suscita preocupação é o fato que a exigência de funcionalidade e sucesso parece ter criado um fenômeno de orientação constante a modelos adequados para a condução da vida, e esses regimes “violentam ora corrigindo aquilo que é identitariamente inadequado, ora tornando invisíveis modos de ser que a priori não têm direito de vir a ser” (Cabral, 2018, p. 18).





Referências bibliográficas


BARIANI, E. O labirinto de Dédalos: a ideia de mundo como horizonte da existência humana. Curitiba: CRV, 2018.

BOSS, Medard. Angústia, culpa e libertação: ensaios de psicanálise existencial. Tradução de Bárbara Spanoudis - 3. ed. - São Paulo: Duas Cidades, 1981.

CABRAL, Alexandre Marques. Desidentidades e resistências: ensaio de alterogêneses político-existenciais.Rio de Janeiro: Via Verita, 2020.

___________. Nietzsche e a semântica da vontade de poder. Revista Trágica: Estudos sobre Nietzsche. 1º semestre de 2019. Vol. 2. N. 1. P. 20-37. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tragica/article/viewFile/24012/13302

___________. Psicologia pós-identitária: da resistência existencial à crítica das matrizes cristãs da psicologia clínica moderna. Rio de Janeiro: Via Verita, 2018.

CASANOVA, Marco Antônio. Mundo e historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e tempo. Vol. 1: Existência e mundaneidade. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017.

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo. Existência e Psicoterapia: da psicologia sem objeto ao saber-fazer na clínica psicológica existencial. Rio de Janeiro: IFEN, 2017.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: NAU, 2013.


SOBRE O AUTOR


Felipe Miranda Zanetti é especialista em psicologia clínica fenomenológico-existencial (UNIFEG, 2020); psicólogo clínico; e psicólogo educacional, com ênfase em educação inclusiva. Também atua como professor no curso de psicologia do IMES Catanduva.

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