por Hugo Manuel Morales dos Reis
“Heidegger considera ‘fatal’ a distinção entre o consciente e o inconsciente não por pensar que todos os modos de ser do ser humano são, por definição, conscientes, mas por acreditar ter mostrado, em Ser e Tempo, que esses modos, devido à sua estrutura ontológica, não podem ser definidos no domínio de atos mentais (representacionais).” (Loparic, 2001, p. 52)
Delimitar fronteiras e buscar a essência da natureza humana parece ter sido uma das questões mais recorrentes no pensar filosófico e, mais recentemente, psicológico. Na tentativa de se chegar a um ponto exato e aplicável como modelo, Freud acaba por criar a estrutura que batiza de inconsciente, em oposição à tópica do consciente. Essa estrutura, rapidamente difundida no pensar científico, nasce do desejo de explicar certas indeterminações humanas, partindo da junção do pensamento cartesiano de metafísica da subjetividade e da metafísica da natureza dos cientistas Newton e Galileu.
No campo sobre o qual essa estrutura, naturalizada pela metapsicologia, age, falando de maneira genérica, encontram-se, segundo essa teoria, fatos passados represados por oferecerem risco à estrutura egoica consciente, sendo trancafiados, por assim dizer, no calabouço do inconsciente, onde reverberam sem poder ser ouvidos, estando privados, assim, de uma manifestação.
O pensar fenomenológico existencial vem contrapor essa ideia freudiana difundida por sua metapsicologia, e também pela psicanálise. Para Heidegger, somos seres históricos, marcados pelo caráter de acontecência e não de causalidade. Nosso existir num horizonte histórico nos permite experienciar modos de ser a cada vez, modos esses que estão sempre em jogo com seus sentidos. Assim, para o pensador, esta constante acontecência que nos enreda e nos impulsiona ao futuro é marcada pelo abandono, iminente, de modos de ser, os quais podem cair no fenômeno ôntico do esquecimento, ocasionado não por um mecanismo psíquico determinado, mas, sim, pela própria condição fluida do ser. “O Dasein é movido, ‘motivado’ pelo futuro, e não causalmente determinado pelo passado”, nos diz Loparic (2001, p. 48). O próprio fluxo do ser em seu campo existencial é, assim como abertura, ocultamento, como num jogo de luz e sombra, em que algo se oculta para algo se revelar, para que algo possa vir à luz desta clareira existencial que somos em nossa relação com o mundo.
MARTIN HEIDEGGER (1889-1976) | domínio público
Nesse sentido, Heidegger, em seus Seminários de Zollikon, escreve que “Na repressão de Freud, trata-se da representação que fica escondida. No caso do retraimento, trata-se do próprio fenômeno. O próprio fenômeno retira-se do âmbito da clareira e é inacessível, mas de tal maneira que também a inacessibilidade como tal, deixa de ser experienciável. Aquilo que se oculta permanece o que é, senão eu não poderia voltar a ele.”
Ainda nesta linha de pensamento, Loparic conclui: “O importante é notar que a atribuição do primado ao passado e a modificação encobridora do futuro, acompanhadas de constituição do si-mesmo impróprio, não são ‘atos psíquicos’, quer conscientes, quer inconscientes, mas os modos de ser do Dasein aos quais ele pode ter perdido o acesso.” (2001, p. 49)
Para Heidegger, a estrutura proposta por Freud é limitada justamente pelo fato de reduzir o ser a um psiquismo que pode ser funcional ou disfuncional (no caso das psicopatologias), tal funcionamento retira do ser seu caráter de acontecência, o que há de mais próprio em sua existência, restringindo-o ao campo biológico e ao regime biomédico.
Um conteúdo, uma memória, uma experiência, reprimida ou ocultada, encontra-se onde? Dentro ou fora do ser? É disso que se trata, enfim, o debate. Para ilustrar e refletir acerca de tal questão, proponho um olhar para o filme Morangos Silvestres, de 1957, sob a criação do consagrado cineasta sueco Ingmar Bergman. O filme traz a figura de um médico Isaac Borg; um solitário, um ortodoxo, quase um misantropo. Isaac tem 78 anos e vive em seu lar abastado na companhia de uma cadela e uma criada, a qual tem junto de si há mais de 40 anos. Isaac é viúvo, definido pelas poucas pessoas de seu convívio como um sujeito egoísta, meticuloso e frio.
INGMAR BERGMAN (1918-2007) | domínio público
Diante da figura do médico que Bergman sustenta nos primeiros quadros do filme, esses adjetivos parecem se confirmar e caber bem à figura de Isaac, todavia em uma viagem empreendida por ele (à companhia de sua nora) de Estocolmo a Lund, interior da Suécia, com a finalidade de ser condecorado por seus 50 anos exercendo a medicina, as coisas começam a tomar outra forma. Em determinado momento da viagem, Isaac faz um pequeno desvio em seu trajeto e estaciona às redondezas de uma antiga casa, onde revela à nora ter passado diversos verões no passado, pescando com seu falecido pai e se divertindo com seus primos e irmãos. Por um momento, a moça se afasta, indo se banhar em um lago, então o velho médico se vê só com suas lembranças. Regressa aos tempos de outrora, hoje ocultos pelo matagal que o tempo alimentara, encobrindo o vivido. O verão específico ao qual regressa traz o acontecimento de seu rompimento com sua prima e noiva Sarah, a qual acabara por se casar com o irmão mais velho de nosso personagem central. Nesse breve, porém intenso devaneio, o mais interessante se dá quando Isaac ouve, dos lábios de sua antiga noiva, palavras doces sobre si, palavras que parecem apresentar a nós, espectadores, um ser que, de forma alguma, se aplica à figura apática de Isaac. Ela o descreve como gentil, sensível, altruísta, compreensivo... enfim, causando grande contraste com todas as informações difamatórias que haviam sido despejadas sobre ele e sobre nós até então no decorrer do filme.
Cena do filme Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman | domínio público
Ao fim de seu devaneio, Isaac e sua nora voltam à estrada, seguindo viagem, onde algo parece mudar nessa relação. Durante a viagem, Isaac se reencontra com a juventude, sob os rostos de três caminhantes aos quais acolhe em seu carro. Em dado momento, reencontra-se com a poesia, recita um verso, o esquece, é completado... a memória falha, fareja... realiza uma breve, porém significativa, visita à casa de sua mãe, onde passara a infância. Mais lembranças ocultas lhe são reiteradas, sua relação com a nora e os jovens parece ganhar contornos de uma estranha alegria melancólica. Um casal de meia idade, brigando à beira da estrada, lhe traz a triste lembrança da desgostosa vida ao lado da esposa, relação esta permeada por culpa e traições. O carro e a viagem parecem lhe atirar ao passado e ao futuro ao mesmo tempo, de maneira simultânea.
Por fim, podemos então perceber que existem vários reencontros nesta viagem. Isaac reencontra um modo de ser perdido, oculto e esquecido, o qual parece novamente fazer sentido para si, e que parece ressoar, para ele, principalmente, em sua relação com o mundo e com o outro.
SIGMUND FREUD (1856-1939) | domínio público
Apesar de minha leitura conter um viés fenomenológico, arrisco-me a dizer que Bergman estava muito mais alinhado com Freud e seu aparelho psíquico nas intenções que tenta passar com o filme, uma vez que, assim como os pintores surrealistas e demais artistas, Bergman teve grande influência do pensamento psicanalítico em sua obra. Um dos mecanismos utilizados pelo cineasta que fazem consonância com o pensamento freudiano de inconsciente são os sonhos tidos, como revelações do inconsciente, pelo personagem central, Isaac Borg. Em um desses sonhos, o personagem se encontra com seu próprio corpo “morto”, dentro de um caixão que se precipita em seu féretro e vem a se estatelar no chão. Com a queda, a tampa do caixão se abre, revelando uma pálida e enrijecida mão, a qual, ao se aproximar, o agarra pela manga do paletó, momento em que lhe é revelado que o defunto era ele mesmo. É então que Isaac acorda subitamente.
A atmosfera desse sonho é cercada por casas fechadas e ruínas, um homem de traços deformados e um relógio sem ponteiros (que Isaac reencontra na casa de sua mãe). O sonho lembra em muitos aspectos o quadro A persistência da memória, do pintor espanhol Salvador Dalí. Tempo e forma tornam-se independentes, tornam-se completamente desreferenciados das medidas e juízos.
Cena do filme Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman | domínio público
Considerações finais
Numa leitura fenomenológica de Bergman, podemos atinar para a viagem empreendida como uma espécie de acontecimento apropriador. É a partir dessa viagem, do encontro com a morte, em seu sonho, e com o seu passado na antiga casa de campo, que Isaac passa a acessar suas vivências, suas experiências, e o tempo transcorre em todas as fibras desta relação: na morte vindoura, no esquecimento passado e no reencontro presente, sempre novo e prenhe de sentidos. Isaac foi, Isaac é, Isaac será ainda por algum tempo, deixando, carregando, agarrando pra deixar novamente pelo caminho, e quem sabe tropeçar nas próprias pegadas.
“... a historicidade do Dasein humano em toda a sua mobilidade do relembrar e do esquecer é a condição de possibilidade de atualização do passado em geral.” Gadamer, Verdade e Método (2012, p. 353)
Referências
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
HEIDEGGER, Martin. Seminários de Zollikon. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
LOPARIC, Zeljko. Além do inconsciente: sobre a desconstrução heideggeriana da psicanálise. Natureza humana. São Paulo, v. 3, n. 1, p. 91-140, jun. 2001. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302001000100004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso realizado em 20.07.2021.
Morangos silvestres. (1957) Filme de Ingmar Bergman. Suécia. Drama | Romance.
SOBRE O AUTOR
Hugo M. M. Reis é psicólogo clínico, graduado em psicologia pelo Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium (2019). Atualmente cursa especialização em Psicologia Fenomenológica e atua como professor no curso de psicologia da UNIPLAN.
E-mail para contato: hugomanuel964@gmail.com
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